Por Marcela Carvalho Bocayuva, mestre em direito público
A conceituação dos serviços regidos pelo microssistema do direito portuário, há muito, vem sendo alvo de debates acalorados no âmbito do parlamento, dos tribunais e da doutrina. Ao longo das últimas décadas, as alterações legislativas sofridas acerca do tema – considerando a progressão da promulgação dos diplomas normativos de n. 8.630/1993, n. 12.815/2013, Portaria n. 574/2018 do Governo Federal e da Lei n. 14.047/2020 – exprimem, sobretudo, que a concepção dos serviços portuários, especialmente no que tange aos contratos de arrendamento, tem sofrido variações de entendimento e, por óbvio, essas alterações implicam em consequências lógicas e inafastáveis no tratamento conferido a essa modalidade de serviços. Uma delas é a adequação da aplicação do sistema tributário de acordo com a natureza jurídica das atividades portuárias desempenhadas em se tratando de exploração das instalações portuárias por empresa arrendatária, como a incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU.
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Desse modo, analisar-se-á se a referida atividade portuária, ainda que exercida por arrendatário, pode se enquadrar como prestação de serviço público e as implicações decorrentes dessa classificação no que se refere à incidência do IPTU.
O Brasil, de acordo com o Ministério da Infra Estrutura (MINFRA), representa expressiva relevância no âmbito do Setor Portuário Mundial, uma vez que detentor de 36 Portos Públicos organizados e mais de 250 Terminais de Uso Privado (TUPs), cuja administração recai diretamente à União, no caso das Companhias Docas, ou exercida de forma delegada a municípios, estados ou consórcios públicos, sendo sua área delimitada por ato do Poder Executivo, conforme consubstanciado no art. 2º da Lei n. 12.815/2013.
Segundo consta no relatório de Avaliação Concorrencial da OCDE, o Setor Portuário brasileiro é responsável por 98% (noventa e oito por cento) das exportações do país e mais de 92% (noventa e dois por cento) das importações em termos de volume, além de estar positivamente relacionado com crescimento do PIB. Por esta razão, tais atividades são tidas como indispensáveis catalisadoras do processo de desenvolvimento econômico e social do país, além de fomentar o comércio exterior.
É o que se depreende também da correlação do desempenho do setor portuário no plano interno com a melhora de posição do Brasil no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial dos últimos anos.Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu art. 21, inciso XII, alínea ‘f, estabelece que é de titularidade da União a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres. O referido poder-dever, não obstante, pode ser exercido de forma direta ou indireta – mediante autorização, permissão e concessão.
Como se pode notar, a norma constitucional de escalão superior estabeleceu expressamente que a exploração de atividades relacionadas aos portos ostenta status de serviço público, independentemente de se concretizar de forma direta ou indireta. A relação entre as premissas constitucionais e as normas de escalão inferior é de deferência, portanto é a partir dos parâmetros conferidos pela Constituição Federal que a legislação infraconstitucional deve conformar o seu âmbito de incidência.
O conceito de serviço público para o Direito Administrativo abrange toda atividade material a qual a legislação – no caso brasileiro, a própria Constituição de forma expressa ou implícita – atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio de delegados, com vistas a concretizar direitos fundamentais e a atender às necessidades coletivas, sob regime jurídico de natureza total ou parcial de direito público.
Assim, quanto à exploração de atividades portuárias, tem-se que tais serviços são públicos por inerência, já que seu fundamento de validade é retirado diretamente do texto da Carta Magna, o que, por conseguinte, obsta qualquer margem de deliberação quanto à aplicação do regime de direito público, a sua incidência é atraída automaticamente nesses casos, porque assim foi imposto pelo legislador originário constitucional.
Sabendo disso, ainda que em se tratando de arrendamento portuário, é lícito à empresa arrendatária executar as funções típicas do serviço público que lhe foram delegadas, inclusive para terceiros. Por esta razão, a antiga Lei de Portos de n. 8.630/1993 continha diversas atribuições típicas da concessão de serviços públicos. Cabe mencionar, por exemplo, as cláusulas de reversão de bens, bem como as de metas de qualidade e de padrões de serviço.
À luz da legislação vigente à época restou claro que o arrendamento no direito portuário não corresponde com o arrendamento propriamente dito consubstanciado no Código Civil, denominado “locação de direito público”. Consiste, em realidade, em modelo de subconcessão sui generis, tendo em vista que, ao arrendatário, são impostos deveres típicos de contrato de concessão.
Para ilustrar o que foi afirmado, menciona-se os princípios da continuidade do serviço, a prestação de serviço adequado e a modicidade de tarifas que devem ser respeitadas nesses contratos. Assim, com o advento da Lei n. 12.815 em 2013, a competência para celebrar e gerir os contratos de arrendamento de instalações portuárias localizadas nos portos organizados foi centralizada diretamente na União, na qualidade de titular e de poder concedente.
Ato contínuo, tendo por objetivo precípuo sanar as deficiências na infraestrutura portuária brasileira percebeu-se uma tendência do legislador em recrudescer o mecanismo de delegação de competências como instrumento garantidor de maior celeridade, objetividade e precisão na Administração Pública. O Setor Aquaviário, inclusive, entende o instituto como corolário do melhor desempenho das funções do Estado, com potencial de desafogar ou descongestionar a Administração.
Assim, em 2018, foi expedida pelo extinto Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, a Portaria n. 574, a qual transferiu a responsabilidade de gerir e fiscalizar os contratos de arrendamento às respectivas autoridades portuárias, inclusive com poderes de deflagrar procedimento licitatório, desde que presentes elementos de conveniência e oportunidade da Administração, bem como demonstrada a capacidade técnica para tanto, além da submissão à apreciação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ).
Para promover a manutenção do mencionado propósito, a Lei n. 14.047 de 2020 foi responsável por promover alterações à Lei n. 12.815/13 no tocante às cláusulas essenciais dos contratos, com o objetivo de se fazer uma distinção entre os contratos de concessão e os de arrendamento, , retirando aquelas referentes à previsão de reversão de bens e aos métodos de verificação do padrão do serviço, as quais impunham a aplicação do regime de direito público.
O que, por si só, não retira a qualidade de serviço público das atividades desempenhadas em contrato de arrendamento, já que, ainda assim, tais contratos devem respeitar os princípios que regem a Administração Pública do art. 37 da CF..
O referido marco regulatório, portanto, envidou esforços para possibilitar uma maior abertura de mercado, de modo a aumentar a prospecção da concorrência entre portos públicos e privados e de proporcionar tarifas portuárias mais vantajosas, elevando-se, assim, os graus de competitividade e de eficiência.
Para tanto, diversas transformações no setor passaram a ocorrer, especialmente, por meio do movimento de progressiva desestatização dos portos públicos do país, a exemplo do Porto de São Sebastião – SP, do Porto de Itajaí – SC, da Companhia das Docas do Espírito Santo – ES (CODESA), da Companhia das Docas da Bahia – BA (CODEBA) e, por fim, do Porto de Santos. Até o presente momento, as parcerias com o setor privado tem por enfoque o processo de interligação dos modais ferroviários e rodoviários com os portos.
O país, portanto, caminha para o sentido de se instaurar os preceitos do modelo de Landlord Port, o qual se traduz em sistema híbrido de administração, em que há o equilíbrio entre as iniciativas privadas e públicas, conferindo maior autonomia à autoridade portuária.
Não obstante todos esses esforços, a referida atividade portuária continua se tratando de hipótese de serviço público de prestação não obrigatória pelo Estado, a qual, não sendo prestada diretamente, compele o Estado a promover-lhe a execução por outros meios, ainda que por intermédio de terceiros, podendo sempre retomá-los conforme sua conveniência e oportunidade. Assim, ao optar por não o prestar diretamente, transfere-se apenas a execução, mas não a titularidade do serviço, o que pode ocasionar na sua retomada, já que está inserido na esfera de discricionariedade do administrador.
O conceito de serviço público retira seu fundamento de validade da própria Constituição Federal, portanto, deve-se interpretá-lo, não de modo restritivo, mas de modo a concretizar os princípios da Administração Pública. A aparente implementação de regime econômico concorrencial no âmbito do Setor Portuário é, em verdade, uma forma de se concretizar os princípios da Administração Pública por meio da ponderação de princípios, considerando que o objetivo último dos serviços públicos é garantir a fruição de direitos fundamentais. É por esta razão que a atividade sempre será de natureza de serviço público e não de atividade econômica em sentido estrito, não importando se é exercida no âmbito de portos públicos ou privados.
O Estado, nessas hipóteses, atuará como garante. Impor obrigações implícitas ao arrendatário seria considerado como motivo de desequilíbrio econômico e financeiro nos contratos.
Quanto à incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU em contratos de arrendamento portuário, o entendimento preponderante era o de que não cabia a incidência tributos sobre as áreas demarcadas como terreno de marinha em hipótese alguma – tanto no caso de exploração direta ou quanto indireta.
Isso porque, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, os imóveis que compõem o acervo patrimonial dos Portos Públicos são de domínio da União e sobre eles recai o manto da imunidade tributária, consubstanciada no art. 150, VI, ‘a, da CF. Confira-se:
TRIBUTÁRIO. IPTU. IMÓVEIS QUE COMPÕEM O ACERVO PATRIMONIAL DO PORTO DE SANTOS, INTEGRANTES DO DOMÍNIO DA UNIÃO. Impossibilidade de tributação pela Municipalidade, independentemente de encontrarem-se tais bens ocupados pela empresa delegatária dos serviços portuários, em face da imunidade prevista no art. 150, VI, a, da Constituição Federal. Dispositivo, todavia, restrito aos impostos, não se estendendo às taxas. Recurso parcialmente provido.
RE 253394, Relator(a): ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 26/11/2002, DJ 11-04-2003 PP-00029 EMENT VOL-02106-04 PP-00768.
Desse modo, ao se deparar com um caso de a) exploração indireta por pessoa jurídica ou por terceiro – do porto organizado, a qual se concretiza por meio de concessão; ou b) de exploração indireta das instalações portuárias, por arrendamento de bem público, a Corte os interpretava como situação excepcional de mera detenção de natureza precária de bem público e não de posse. Isto é, em ambas as situações considerava-se que não havia a presença do animus domini e, por esta razão, se estenderia a aplicação do instituto da imunidade recíproca.
Não obstante, o mencionado posicionamento sofreu modificação em sede de Repercussão Geral, no sentido de autorizar que as empresas arrendatárias de serviço público passassem a figurar como sujeitos passivos da obrigação tributária, tanto para contratos vigentes quanto para futuros, no bojo dos Temas n. 385/STF (caso paradigma: RE 594015) e n. 437/STF (caso paradigma: RE 601.720), considerando que não teriam legitimidade para usufruir da referida imunidade.
A tese, então, foi fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos seguintes termos:
A imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da Constituição não se estende à empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo município.
A partir dos referidos marcos decisórios, embora as empresas arrendatárias atuem essencialmente na exploração de serviço público, qual seja, a exploração de instalações portuárias, passaram a integrar o polo passivo da obrigação tributária quanto ao pagamento de IPTU, porquanto houve uma reclassificação da natureza do serviço prestado entre a concessionária e a União e entre a concessionária e a empresa arrendatária, passando a última hipótese a ser considerada como atividade econômica em sentido estrito.
Essa alteração passou a viger no ano de 2018, com efeitos prospectivos, e, tal fato superveniente, inevitavelmente, desencadeou um fenômeno de perturbação excessiva da realidade econômica desses contratos.
Diante disso, a Diretoria da ANTAQ, por ocasião da 485ª Reunião Ordinária, deliberou que os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de arrendamentos portuários, cujo desequilíbrio se deu em virtude do impacto provocado pela incidência do IPTU, serão analisados caso a caso, de acordo com as peculiaridades da realidade empírica enfrentada pelo requerente.
Isso significa, em outras palavras, que a referida agência reguladora, de fato, reconheceu que a incidência do tributo nos casos de contrato de arrendamento provocada pela superveniente mudança de entendimento da Corte é, definitivamente, fato gerador de desequilíbrios a depender dos termos do contrato de arrendamento, sobretudo daqueles firmados sob a égide da Lei n. 8.630/1993, anteriormente à alteração do microssistema de direito portuário, mais especificamente da Lei n. 12.815/13, em que constavam cláusulas essenciais que equiparavam o arrendamento ao regime de concessões.
Nesse sentido, o contrato funciona tal como um sistema que, embora independente, não está alheio a influências externas e, portanto, deve passar por um processo de homeostase para manter o equilíbrio interno constante, independentemente do que aconteça no meio externo. Assim, qualquer alteração que provoque expressiva modificação na dinâmica pré-estabelecida deve ser considerada para fins de manutenção da segurança jurídica interna.
Portanto, em homenagem à eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais na esfera pública e na privada (entre Estado e particulares e particulares entre si), portanto, impõe-se nos presentes casos uma readequação do equilíbrio econômico-financeiro, para que seja restabelecida a previsibilidade, a coerência e a segurança jurídica da relação contratual, a qual foi firmada de acordo com os preceitos do devido processo legal.
O refazimento da harmonia da relação, portanto, é indispensável, sob pena de vulneração ao princípio norteador das concessões públicas, que é a eficiência dos serviços destinados ao usuário, bem como a garantia ao setor privado retorno equilibrado do seu investimento.
Ao examinar os modelos de tributação,sob o contexto internacional, observa-se uma variedade de abordagens em sistemas tributários. Países como a Dinamarca e a Suécia, por exemplo, têm sistemas tributários de alta carga, mas oferecem amplos serviços sociais.
Por outro lado, economias como Singapura e Hong Kong adotam uma abordagem de baixa tributação, incentivando o investimento e o crescimento empresarial. Esses modelos destacam diferentes equilíbrios entre arrecadação de impostos e provisão de serviços públicos, oferecendo modelos que interessam ao Brasil em termos de eficiência, equidade e incentivos econômicos. Analisando-se, por fim, sob uma perspectiva da Análise Econômica do Direito, constata-se que a cobrança superveniente de um imposto oneroso nos contratos de arrendamento existentes e futuros à época da mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal, efetivamente, foi responsável por causar prejuízos em todos os âmbitos da relação contratual, entre o arrendatário e poder concedente, à Administração Pública, em relação ao Município e, em última instância, ao consumidor final, já que, inclusive, tem o potencial de inviabilizar a manutenção da eficiência do serviço prestado e modificar diretamente o preço da proposta.
Desse modo, entende-se que a aplicação do IPTU nos contratos de arrendamento vai de encontro com a própria natureza do serviço de exploração das instalações portuárias, o qual é essencialmente serviço público, e, ao fim e a cabo, é um fator que obsta o incentivo dos investimentos do setor portuário, reduz a atratividade, uma vez que é capaz de alterar até mesmo o valor das licitações, tornando-se um fator limitador da concorrência e da competitividade. A aplicação do sistema tributário nesses casos, embora o propósito em vista seja positivo, é um meio absolutamente inadequado para alcançar o escopo que se almeja, tanto sob o aspecto formal quanto o material, uma vez que tem o condão de trazer mais prejuízos que ganhos aos Setor Portuário ao trazer consigo motivos de desestímulo a investimentos na área.
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Marcela Bocayuva é Advogada. Mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília. Especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios- FESMPDFT. Concluiu a certificação de liderança e Negociação na Universidade de Harvard. Cursou Law and Economics na Universidade de Chicago – Uchicago. Estudante visitante na New York University – NYU). Coordenadora da Escola Nacional da Magistratura.