A memória afetiva tem o poder de contribuir de diversas maneiras para nossas experiências ao longo da vida, mesmo depois de muitos anos. Francine Cruz é um exemplo dessa construção de vivências positivas desde a infância: quando era criança, ela ouvia com entusiasmo as histórias contadas por seu avô. Ao crescer, enfrentou a perda dele, mas hoje o homenageia por meio de sua carreira como escritora e do livro intitulado “Vovô foi embora, mas deixou muita história”.
Essa obra infantil retrata a visão de uma criança sobre o luto. Apesar da tristeza, a protagonista lembra da personalidade marcante do avô e das lembranças preciosas que compartilharam juntos. Ao recordar com carinho, ela percebe os contrastes entre gerações: enquanto o avô preferia viajar de trem, o mundo atual opta pelos aviões; a sociedade está sempre apressada, mas seu ente querido era sempre calmo e tranquilo.
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A personagem também evoca as narrativas eternizadas pelo avô, que valorizava o folclore brasileiro ao contar lendas como a Mula Sem Cabeça, o Saci e o Pedro Malasartes. Essa conexão com a cultura do país é representada nas ilustrações criadas por Débora Bacchi.
Para que “Vovô foi embora, mas deixou muita história” alcance o maior número de pessoas possível, o conteúdo foi pensado de forma inclusiva, levando em consideração a Lei Brasileira de Inclusão. A fonte utilizada no livro tem um tamanho ampliado, visando atender às necessidades dos mais de 6 milhões de brasileiros com baixa visão ou visão subnormal, de acordo com dados do IBGE.
Além de ser professora e escritora, Francine Cruz é doutoranda em Educação, possui mestrado em Educação e é licenciada em Educação Física e Letras, com habilitação em Português e Inglês. Como autora, ela recebeu o Prêmio Agente Jovem de Cultura do Ministério da Cultura, foi selecionada em concursos e editais com seus contos e publicou o livro “Amor, Maybe”. Ela também é membro de diversos coletivos literários femininos, como As Contistas, Mulherio das Letras, Ruído Rosa, Marianas e Vozes Escarlate. Agora, Francine está divulgando sua mais recente produção, o livro infantil intitulado “Vovô foi embora, mas deixou muita história!”.
Como suas próprias experiências pessoais com a perda de seu avô influenciaram a criação do livro “Vovô foi embora, mas deixou muita história”?
Assim como muitas crianças brasileiras, fui criada pelos meus avós maternos, e meu avô sempre foi uma grande referência para mim. Ele era muito carinhoso e um grande contador de histórias, cresci com ele contando causos e declamando seus poemas para mim. Essas histórias eram transmitidas por meio da oralidade, e eu tinha muito medo de esquecê-las, então, quando me tornei adulta, pedi para que meu avô escrevesse algumas num caderno e outras eu gravei e transcrevi com ajuda do meu marido. Reunimos essas histórias num livro e, quando meu avô completou 80 anos, demos o livro de presente para ele e para os familiares e amigos próximos. Meu avô faleceu com 85 anos, quando minha filha tinha apenas cinco meses, mas as histórias ficaram registradas e passei a contá-las para ela, como meu avô fazia comigo. Então percebi que, apesar de ele ter ido embora, tinha deixado muitas histórias, não só as ficcionais, mas a histórias de vida que compartilhamos e que deixaram muitas saudades e lembranças boas. Foi assim que nasceu esse livro, como uma lembrança boa e uma homenagem ao meu avô, que foi uma pessoa muito especial na minha vida.
Qual é a mensagem principal que você deseja transmitir às crianças que estão enfrentando o luto de um ente querido?
É natural sentirmos saudade, mas podemos transformar essa saudade num sentimento de gratidão e alegria pelo tempo em que vivemos juntos. A perda não precisa ser sempre triste, pois as pessoas se vão, mas deixam lembranças e marcas em nossa vida que vamos guardar para sempre no coração.
Como você abordou o tema do luto de uma forma adequada e sensível para o público infantil?
O luto é ressignificado à medida que a criança percebe que o avô foi embora, mas deixou muitas recordações: “vovô foi muito esperto: gravou-se em nosso coração. Lembro dele com carinho: colo, cafuné e beijinho!” Ao lembrar com carinho dos momentos vividos ao lado do avô, a saudade é transformada num sentimento bom, de amor infinito e incondicional por aqueles que deixaram um legado em nossa história. Apesar de, na obra, o luto estar relacionado ao avô, ele não se restringe ao avô. Os leitores podem adaptar a história para situações de luto com outros familiares, explicando às crianças que aquilo que se passa com o avô na história é equivalente ao que a família passa com a perda do ente querido.
Como a cultura brasileira e as lendas folclóricas se encaixam na história do livro?
Logo no início do livro, o narrador conta que o avô partiu para o céu, levando queijo e goiabada na bolsa de viagem, a mistura desses dois alimentos é tradicional no Brasil. O avô também transmitia para a criança contos da tradição oral brasileira, como o “compadre folharada” e as histórias de Pedro Malasartes (personagem tradicional da cultura brasileira). Além disso, o avô inventava histórias dizendo ter visto o saci pererê, a mula sem cabeça, entre outros causos de assombração com tesouros enterrados, tão comumente contados pelas gerações mais antigas.
Como foi o processo de colaboração com a ilustradora Débora Bacchi para criar as ilustrações que complementam a narrativa?
Além de ilustradora, a Débora Bacchi é minha amiga pessoal e já realizou vários trabalhos em parceria comigo, ela tem total liberdade para criar as ilustrações da maneira que julga melhor. Às vezes debatemos sobre um ou outro detalhe, mas a última palavra sobre as ilustrações é dela. A história deste livro, em especial, era muito tocante para ela pelo fato de sua avó materna e grande conselheira também ter falecido recentemente. Buscando a representatividade da criança, ela optou pela colagem e pela utilização de cores alegres, pois, apesar de ser um livro que tem o luto como tema, esse processo acontecesse de maneira singela e carinhosa.
Por que você optou por uma abordagem inclusiva em relação à fonte ampliada das palavras no livro?
A acessibilidade é uma das premissas do edital de Mecenato Subsidiado da Fundação Cultural de Curitiba, edital pelo qual a obra foi financiada. A opção pela fonte ampliada se deu na intenção de ampliar e facilitar o acesso ao produto cultural livro para os mais de seis milhões de brasileiros, que segundo o IBGE (2010) têm baixa visão ou visão subnormal, respeitando assim o Art. 42. da Lei Brasileira de Inclusão – LBI (Lei no 13.146/2015) que diz que: “A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso: I – a bens culturais em formato acessível”. Em adição, esse tipo de letra também colabora com o processo de alfabetização das crianças que estão aprendendo a ler.
Qual é o papel dos avós na vida das crianças e como eles podem ser lembrados e homenageados mesmo após sua partida?
Os avós têm um papel importantíssimo na vida das crianças, pois são parte da família e geralmente são aqueles que ajudam os pais nos cuidados e atenção à criança, sendo uma figura de referência, de estabilidade emocional e segurança para elas. Além disso, as relações intergeracionais trazem inúmeros benefícios para todos os envolvidos, como a troca de experiências, o respeito à diversidade e o desenvolvimento da empatia. Os avós podem ser lembrados e homenageados de muitas formas, especialmente na perpetuação de suas histórias e vivências.
Como você acredita que o livro pode auxiliar os adultos a conversarem com as crianças sobre o tema do luto?
Pela ordem natural da vida, normalmente os avós são os que partem primeiro e são, muitas vezes, o primeiro contato das crianças com essa situação de perda e luto de alguém próximo. Tocar nesse assunto com crianças não é uma tarefa simples, porém, se faz necessário. Dessa forma, torna-se de suma importância tratar desse assunto de maneira apropriada na literatura, com naturalidade, respeito e afetividade, em especial para as crianças pequenas, que ainda não tem uma compreensão precisa sobre o tema, e é isso que esse livro procura trazer.
Quais foram os desafios ao lidar com um assunto delicado como o luto em um livro voltado para o público infantil?
Abordar o falecimento de um ente querido é um tema tocante e pouco trabalhado com as crianças, muitas vezes ainda tratado como um tabu, ainda assim, o assunto é de grande relevância e precisa ser abordado nas obras destinadas ao público infantil. O maior desafio foi ressignificar esse luto, tornando a saudade uma lembrança agradável.
Além do tema do luto, quais outros valores ou lições você espera transmitir aos leitores por meio desta história?
Uma das coisas que considero essencial transmitir nesta obra é o poder que as histórias têm de nos conectar, de nos transportar para outros mundos e desenvolver nossa criatividade e afetividade, mostrando a importância de se perpetuar as histórias tradicionais e as histórias familiares. Além disso, a relação carinhosa entre as gerações (avô/neto) também é algo muito valorizado neste livro e que eu espero que seja transmitida aos leitores.
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