Comédia

Graziella Moretto estrela comédia ‘A Reclamação da República’, reflexão sobre o papel das mulheres na História brasileira

Peça escrita e protagonizada por Graziella Moretto retorna aos palcos, abordando a importância das vozes femininas na construção da República brasileira e a busca por uma história mais justa e inclusiva

Publicado em 30/07/2023
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A comédia “A Reclamação da República”, escrita e estrelada por Graziella Moretto, volta aos palcos em uma curtíssima temporada no Teatro MorumbiShopping, de 05 de julho a 03 de agosto. O espetáculo traz à tona reflexões sobre os afazeres domésticos e a ausência de mulheres nos lugares de poder, enquanto resgata figuras femininas apagadas dos livros de história, como a Imperatriz Leopoldina e a Marquesa de Santos. Vencedor do Prêmio PRIO do Humor, na categoria Melhor Texto, o espetáculo promete uma visão decolonial da história do Brasil e uma análise crítica da organização social sob o sistema patriarcal.

A atriz protagonista da peça, impedida de chegar ao trabalho, revisita um trabalho de escola sobre a Independência do Brasil, buscando entender a invisibilidade das mulheres na História recente do país. Ao investigar as trajetórias das personagens históricas, ela tenta montar o quebra-cabeças do passado para obter uma melhor visão do panorama atual da República brasileira. Com humor e perspicácia, a comédia traz à tona questionamentos sobre a presença das mulheres nos eventos históricos e a urgência de reconstruir a bibliografia com narrativas femininas.

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Graziella Moretto compartilha o processo de construção do espetáculo, destacando o desejo de apresentar uma visão decolonial da história brasileira para suas filhas. Ao questionar a ausência de mulheres nos livros didáticos, ela destaca a importância de diversas vozes femininas na reconstrução da história e na luta por uma República mais justa e igualitária. Com seu humor característico, Graziella busca conscientizar o público sobre a relevância da participação feminina na história do Brasil e a necessidade de reconhecer suas contribuições e protagonismo nos processos históricos do país.

Como surgiu a inspiração para criar e protagonizar o espetáculo “A Reclamação da República”?

Ela vem de um momento histórico, claro que bastante estimulante para quem estava pensando nas questões da democracia no Brasil, que foi o ano de 2022 e a véspera das eleições, com o Brasil comemorando 200 anos da independência, e tendo, mais uma vez, pessoas ligadas ao exército, militares no poder, como havia sido em 1972, no sexto quicentenário. Só que, dessa vez, tentando novamente recompor, num Brasil muito diferente, de 1972, narrativas muito antigas a respeito da ideia do que foi, do que tinha sido a independência no Brasil.

E esse momento foi também, para mim, pessoalmente, que estudo há muito tempo a história das mulheres e a invisibilidade das mulheres na história, um momento propício, porque a gente já estava lidando com tantas formas de opressão e perceber que a história ia ser contada, mais uma vez, com tantas lacunas, com tantas falhas nessa representação dos agentes da independência, centralizar numa pessoa só, num indivíduo, quando foi um movimento com tantas diferentes forças agindo, eu achei que era um momento propício para a construção desse espetáculo.

Qual foi o processo de pesquisa e construção do texto da peça, considerando a visão de colonial da história do Brasil e a ausência das mulheres nos livros didáticos?

Justamente a ausência das mulheres que chegou a mim através de um livro didático foi um ponto de partida importante, mas eu já vinha interessada há muito tempo numa compreensão do que seja a história a partir dessas invisibilidades, não só das mulheres, mas como de todas as outras pessoas que são envolvidas nos processos históricos e que não entram para os livros. Então, eu tive a ajuda de uma colega que é muito minha amiga, a historiadora Patrícia Santos Hansen, que me orientou nas pesquisas. Um dos livros que me ajudou muito, que me ajudou a pensar essas questões de representação da República, que é um livro de história muito conhecido do professor José Murilo de Carvalho, que é um autor bastante associado a essa pesquisa no Brasil, que é um livro sobre.

Ele é um estudioso, lógico, da República, mas ele é uma pessoa que tem uma obra bastante interessante sobre a forma como a República é representada e como é que isso reflete os interesses das pessoas que estão no poder. E eu acho que, a partir daí, eu pensei que a gente tinha uma República para reclamar no sentido de clamar de volta.

Como é interpretar uma personagem que reflete sobre a desigualdade de gênero, a carga dos afazeres domésticos e a ausência de mulheres nos lugares de poder?

Essa personagem, ela é um combo de todas as minhas experiências com as experiências das mulheres ao meu redor e de toda a minha vida aos 51 anos de idade. Ou seja, não estou só falando de mim hoje com a carga que eu tenho na vida doméstica, mas também repensando o lugar das minhas mães, das nossas mães, das nossas avós e das mulheres ao meu redor. Ao meu redor, eu tenho mulheres de muitas frentes de combate. Eu tenho mulheres que estão na pobreza, que criaram filhos sozinhas em condições muito extremas. Tem mulheres que criam filhos sozinhas em condições melhores e não estão menos sobrecarregadas, apesar de que a sua condição financeira determina muito do que vai ser, a maneira como você desempenha a sua maternidade, às vezes com mais tempo para dedicar para um filho ou menos, às vezes com mais energia e disposição. Mas eu precisava fazer um personagem que abarcasse todas essas vivências que são universais, apesar das nossas diferenças sociais.

Tem algo na maternidade que é muito solitário e que tem a ver com um abandono mesmo do Estado e da nossa sociedade sobre a mãe, porque o trabalho doméstico é um trabalho, historicamente, ancestralmente, associado à desvalorização financeira, econômica, da mulher. Você domestica a mulher em um trabalho que não vale nada, ou seja, você a ensina que aquela é a função dela na sociedade, manter aquela casa, manter… E essa é a troca que ela faz para existir, para ter uma casa, uma proteção, para ter um marido que provém e tudo mais. Mas quando, na verdade, a maior parte dessas mulheres está fazendo o trabalho todo sozinha.

Quais foram as principais figuras femininas resgatadas na peça, como a Imperatriz Leopoldina e a Marquesa de Santos, e como elas contribuem para a compreensão do panorama atual da nossa República?

Bem, escolher a Imperatriz Leopoldina Marquesa de Santos era, logicamente, uma escolha natural, porque eu estava pensando a questão da representação da independência centrada nessa figura única de um homem herói, que era o Dom Pedro I, sendo a pessoa que declarou a independência do Brasil. Quando, na verdade, a gente tem inúmeros movimentos no Brasil, principalmente na Bahia, que já é uma coisa muito reconhecida hoje em dia, e que também tinha muitas mulheres associadas, além da Maria Quitera e da Joana Angélica, que foram personagens que até conseguiram atravessar um pouco a história, mas tem muitas outras mulheres associadas a esse movimento, sempre teve. E a questão da Leopoldina com a Marquesa acho que é emblemática porque são pessoas que tinham agência, estavam associadas a esse movimento intelectualmente, politicamente, e são representadas na história, através dos livros, através das narrativas ficcionais, por exemplo, filmes e racontos daquilo que possa ter sido a independência, como acessórios, como pessoas que estavam ali ajudando o homem que estava no poder.

Mas quando, na verdade, elas tinham agência e estavam pensando também aquelas questões, refletindo, e deixaram um legado que foi apagado. Se você olha as cartas da Imperatriz Leopoldina, por exemplo, você percebe que era uma pessoa interessada na política, interessada e uma pessoa que tinha condições e competências para fazer um movimento político como o da independência.

O espetáculo aborda o tema da representatividade feminina na história do Brasil. Na sua opinião, por que é importante reconstruir essa bibliografia do zero com muitas vozes femininas?

Então, juntando com essa coisa da compreensão do panorama atual da nossa República, estamos falando de representatividade, mais uma vez. Por que você escolhe trechos da história em que homens, que muitas vezes são homens imprefeitos, entram para a história como homens heróis, com muitas qualidades e virtudes e pouquíssimos defeitos? Na verdade, os defeitos passam assim porque não é possível. Tem tantas fontes e relatos históricos que revelam esses defeitos, que não é possível você simplesmente abafar, botar um pano em cima e fazer de conta que não aconteceu.

A gente precisa recontar a nossa história, não só com as vozes das mulheres, mas com todas as vozes que fizeram a história acontecer. Com a voz dos indígenas, dos povos originários, com a voz dos descendentes de africanos, com a voz das pessoas que fizeram o dia -a -dia daquela, enfim, revolução que não foi bem uma revolução, porque a nossa independência foi declarada sem uma revolução popular. Então, só isso já diz muito sobre o processo todo. Como é que a gente chega a um povo que está tão controlado que a própria ideia de revolução é feita pelas pessoas que estavam no poder?

Como tem sido a recepção do público em relação ao espetáculo e à mensagem que ele transmite?

O primeiro foi a estreia em setembro de 2022. Eu estreei no dia 2 de setembro, que é o dia que oficialmente a Imperatriz Leopoldina assinou a independência do Brasil, e terminei no dia 1º de outubro, que era a véspera do primeiro turno das eleições. Então, havia um sentimento muito urgente de resgate com essa ideia de que a gente tem uma república que é muito mais do que só um ideal. Ela é o esforço do coletivo em fazer um lugar que tenha justiça, igualdade, liberdade, fraternidade, mas a gente estava muito ameaçado também por uma ideia de que a democracia é uma coisa muito frágil e é um work in progress. Ela está sempre em construção, então, naquele momento, tinha um sentimento de urgência a respeito do que seria a nossa função como cidadãos na construção de uma democracia. Eu acho que hoje temos ainda muito forte essa ideia de que a democracia depende da gente, do nosso esforço cotidiano.

Mas também atravessa muito mais essa questão de que temos aí uma disparidade que é de gênero, que é social, e um abandono das mulheres no sentido de que você exige das mulheres muitas coisas, muitas competências, muitas tarefas que sejam entregues na perfeição, mas dá muito pouco em troca. A nossa sociedade devolve muito pouco para essas mulheres porque esse trabalho tem sido feito gratuitamente por séculos e séculos.

Qual a importância do humor na abordagem desses temas sensíveis, como o apagamento das mulheres na história e a dificuldade de conciliar a vida doméstica e o trabalho?

Então, eu diria que, para mim, como atriz, o humor nunca está dissociado do drama, nem da tragédia. Eu acho que a vida é tudo junto e misturado. Então, eu, pessoalmente, não enxergo como é que uma coisa está separada da outra, né? A nossa vida tem momentos tristes e alegres e a gente está gerindo a existência, as nossas crises e as nossas alegrias, as nossas conquistas e as nossas derrotas, todos os dias tentando fazer o nosso barquinho ficar em cima da água e não afundar. Mas, para mim, o humor é uma ferramenta importante para introduzir temas complexos, duros, difíceis e atravessar, muitas vezes, uma resistência natural que as pessoas têm ou porque já estão com muitas ideias preconcebidas sobre esses assuntos. Então, especialmente na questão da disparidade de gênero, em que a gente tem tantas vozes aí levantando que isso é um radicalismo ou que isso é uma questão que tem que ser freada porque essas mulheres são mulheres que estão interessadas em destruir os homens, a virilidade masculina.

Eu acho que você não pode ir de frente, confrontar pessoas que já estão fechadas e muito defendidas. Eu acho que o humor ajuda a pessoa a se desarmar um pouco e aí você introduz a questão com também generosidade, que é para o outro poder se colocar no seu lugar e dizer, uau, nunca vi por esse ângulo, nunca pensei nisso, nunca me vi nesse lugar, não deve ser fácil. E aí você consegue abrir o debate.

Como você enxerga o papel do teatro e da arte na promoção de debates e reflexões sobre questões sociais e políticas?

Acho que está respondido um pouco em cima, não é? O teatro é uma forma ainda bastante ancestral de reunir pessoas num mesmo lugar. A gente faz um acordo, não é? é? Nós vamos passar uma hora, duas horas aqui nessa caixa escura. Todo mundo vivo, não é? Que é uma experiência muito concreta do humano e do real.

Uma coisa que acontece na sua frente, em contraposição ao cinema, por exemplo, que é uma caixa mágica de ilusão, onde você não sabe se está sonhando ou se está vendo uma realidade produzida diante dos seus olhos. O teatro está sendo construído na sua frente, ao mesmo tempo em que você o constrói, porque o público também faz o teatro, não é? O teatro não é só feito pelos atores, ele é feito pela plateia, é uma ação conjunta. Então, acho que é muito próximo da ideia do que a gente tem de agora, que é uma ideia política ancestral, lá da Grécia. O teatro é esse lugar de reflexão, de construção de pensamento, e ele tem que ser devolvido para as pessoas. Ele não é um privilégio único dos artistas ou das pessoas que o fazem. Ele é uma obra conjunta das pessoas que estão no palco com as pessoas que estão na plateia.

Além de atuar, você também assina a autoria do texto da peça. Como foi esse processo de criação e como é se ver no palco representando suas próprias palavras?

Bem, nos últimos anos eu tenho trabalhado quase que exclusivamente com meus textos, meus próprios textos, então o meu trabalho autoral é também, para mim, a minha forma de existir e resistir. Eu penso que, como autora, muitas vezes eu tenho um embate com a atriz, porque, como eu falei, o teatro é uma coisa viva e eu tenho muita liberdade, porque, como eu sou autora também, às vezes estou em cena e me permito beber dessa relação com a plateia, me permito ser porosa às contribuições que as pessoas têm com a reação delas ao meu trabalho, e isso vai alterando o texto. Mas, muitas vezes, a autora fica um pouco chateada com a atriz, porque a atriz esquece pedaços da peça que a autora escreveu com muito empenho e a autora fala, poxa, isso estava tão bem escrito e você está falando diferente, por que não falar do jeito que está escrito? Então eu estou sempre, de certa maneira, contribuindo e brigando comigo mesma.

Após o sucesso do espetáculo, qual a mensagem que você espera que o público leve consigo e como isso pode contribuir para uma República mais justa e igualitária?

Acho que a resposta que eu espero que o público tenha é a mesma que eu todos os dias tenho, é a reafirmação de uma fé na vida, uma fé no coletivo, uma fé no nosso encontro como sociedade, para além das nossas diferenças, a gente nunca vai ser igual e a gente tem que aceitar isso, a gente tem que aceitar que o mundo é imperfeito, a gente tem que aceitar que a ideia de perfeição só faz a gente se afastar daquilo que é possível, porque tem coisas que são impossíveis de serem conquistadas e a gente tem que se ater ao que é possível, a gente tem que se ater ao como é que a gente melhora o mundo ao nosso redor, a vida do nosso semelhante, com a ideia de que às vezes a gente tem que abrir mão um pouquinho de algum privilégio para poder dar para a pessoa uma vida minimamente digna, para uma pessoa que está em sofrimento ou que está vivendo em uma condição muito pior que a nossa, isso é viver em sociedade. E que quando a gente ri das mesmas coisas e a gente sente no nosso coração compaixão pelas mesmas coisas, a gente já se uniu naquilo que há de mais importante, que é a experiência do humano, que é estar aqui habitando esse planeta nesse tempo no espaço. Então, se a gente tem essa compreensão de que a nossa vida é muito parecida, que a gente sofre pelas mesmas coisas e ri pelas mesmas coisas, a gente consegue superar as nossas diferenças.

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