Reflexões

Irene Genecco nos convida a olhar além do cotidiano em seu novo livro de contos e crônicas

"Um Olhar Para Além do Cotidiano: Contos Urbanos & Outros Que Tais" traz histórias envolventes que refletem sobre o tempo, relações familiares, envelhecimento e as mudanças tecnológicas e sociais, guiando o leitor por enredos reais e fantásticos

Publicado em 02/08/2023 02:11
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A escritora e poeta Irene Genecco nos presenteia com uma obra fascinante, “Um Olhar Para Além do Cotidiano: Contos Urbanos & Outros Que Tais”, em que utiliza situações aparentemente comuns para explorar temas profundos e atuais. Com 20 histórias que mesclam contos e crônicas, a autora nos convida a refletir sobre os efeitos do tempo, o medo do envelhecimento, as relações familiares e a dificuldade de acompanhar as rápidas mudanças do mundo moderno.

Através de narrativas reais e de pura ficção, Irene Genecco nos transporta para universos variados, explorando elementos oníricos, espirituais e metafísicos. Em meio a protagonistas em busca de sua verdadeira essência, somos levados a questionar a exaustiva realidade competitiva e acelerada que muitas vezes nos cerca. Cada história é enriquecida com sugestões musicais que complementam as emoções da leitura, criando uma experiência literária única e envolvente. “Um Olhar Para Além do Cotidiano” é um convite para se desvincular do superficial e mergulhar em reflexões profundas sobre a vida, o tempo e a busca pela liberdade interior.

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Como surgiu a inspiração para escrever “Um Olhar Para Além do Cotidiano: Contos Urbanos & Outros Que Tais”? Quais foram as principais motivações por trás desse livro?

Meu livro é composto por diferentes momentos da minha vida. São escritos feitos ao longo de 30 ou 40 anos, mas também agrego escritos recentes. O que caracteriza minha fala não está contido apenas em “Um Olhar para Além do Cotidiano”, mas está presente em tudo o que escrevo.

Contos, crônicas e poesias são meus modos de expressão. A veste (superfície) desta escrita é feita de situações comuns, mas para mim nunca banais – nisto entra a expressão “um olhar para além”.  A estas situações corriqueiras, cotidianas, aparentemente superficiais, eu chamaria de “ladrilhos”, como em “se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar”. Entretanto, como uma obra ladrilhada, os diferentes ângulos acabam se integrando, se interpenetrando, e a harmonia da palavra aparece como fundo, provocando reflexões em cada um que se dispuser a ler. O fio que une esta diversidade de percepções ao escrever é sempre um fio magnético: a busca de si mesmo, inquietações, conflitos, fantasias, realidade e irrealidade, juntas e misturadas.

“Contos urbanos” se encaixariam na dita “realidade”, e “Outros que tais” fariam parte da imaginação, e/ou ficção, nunca “irreal” por inteiro. Resultado disto é o despontar da transcendência do meramente concreto da vida, da materialidade que nos subjuga. Neste ínterim é possível vislumbrar algo maior, que não se corrompe, que não finda.

A obra aborda temas como o tempo, o medo do envelhecimento e as relações familiares. Como você utiliza os contos e crônicas para explorar essas questões de forma reflexiva?

Eu não utilizo os contos, eles me utilizam. Sou o instrumento que detecta e escrever é consequência e expressão disto. Vejamos: Sobre o tempo, acredito que talvez fosse melhor entendê-lo como algo concreto, e não abstrato como possa parecer. Falo sobre isto no conto “A estação do tempo”: se o tempo fosse abstrato, abstratos seriam nossa alegria e nosso sofrimento. Porém saboreamos na pele, na mente, no humor, na saúde ou na doença os efeitos desta visão temporal. 

O tempo parece nos governar, dominar e até derrotar em muitas circunstâncias, como algo que nos governa e consome, invisível e ditatorial.  É como lutar com um fantasma, nunca sabemos de onde vem, onde está e para onde vai. Mas quando percebemos que o tempo é apenas a organização do que escolhemos ser e praticar, com as consequências disto, tudo fica mais claro, e relativamente mais fácil.

Tudo depende de nós, mesmo imiscuídos num sistema de governo, cultura, sociedade ou religião. Sempre teremos escolhas a fazer. Esta é a relatividade do tempo, a ordem que colocamos no que é mais importante ou menos importante na vida. A vida, cujo tempo é só um sinônimo, é movimento, ação e mutação, portanto nada abstrato, pois depende de força, discernimento e decisão frente aos desafios.

Acredito que ninguém tem medo de envelhecer, pois isto faz parte da vida. O medo não diz respeito à idade, nem a qualquer outro quesito físico. Diz respeito à ameaça de exclusão de ser que é imposta pelos sistemas dominantes. É a ameaça de sentir-se banido desta ou daquela possibilidade, é um fechar horizontes. Isto amedronta, paralisa e consome o gosto, a alegria e o prazer de viver.

O preconceito não tem vida própria em si mesmo, ele é constituído de predeterminações conjuntas num meio. Ele é biunívoco, só aparece numa relação tipo ‘compra e venda’. Ou seja, alguém decreta o como devem ser as coisas, e alguém compra isto como verdade absoluta. Ambos movidos por um elemento comum: o medo de serem banidos de uma pertença vital, serem excluídos do grupo. Isto sustenta uma relação de dominado/dominador. Esta reflexão já inclui o terceiro ponto, sobre relações familiares.

Como eu uso estas reflexões ao escrever? Não penso em valores e princípios como start para dar fluidez à escrita. Eu estaria meusando: seria um texto adaptado, artificial, limitado, mesmo que cumprindo exigências formais linguísticas e lógicas. Talvez por isto a IA nunca cobrirá a sutileza da inteligência viva – a sensação e o sentimento enlaçados pelo intelecto, compondo algo único e induplicável. É esta sutileza extremamente profunda e infinita que caracteriza nosso olhar e nosso entendimento das coisas. 

Os valores, as reflexões, considerações e pilares que estruturam a escrita vêm por si só, na fusão entre o concreto e o abstrato, o acontecimento em si e o que sentimos e pensamos a respeito.  A isto poderíamos chamar de inspiração.

Irene Genecco (Foto: divulgação)

Em “Me adiciona no MSN (de novo!)”, uma das histórias do livro, você aborda os relacionamentos virtuais e a falta de conhecimento de uma mulher mais velha nesse contexto. Qual a importância de discutir a tecnologia e suas influências nas relações humanas?

A questão não é o mundo virtual “tecnológico”, mas os relacionamentos virtuais que parecem se configurar no mundo contemporâneo. É importante discutir e aprender novas tecnologias e incluí-las no seu dia a dia, porém, mais importante é entender que os laços afetivos, as emoções, os relacionamentos e busca de inteireza e crescimento permanecem intocáveis.

O conflito da mulher no conto não é com a tecnologia. O que a trava são seus próprios preconceitos exportados e importados, quanto à idade, estar sozinha há dez anos, divorciada, e estar se aventurando em outra relação. “Será que meus filhos vão me julgar inconsequente?”, “Será que este cara está me zoando?”, “Será que ainda é tempo de eu me atualizar com este mundo calculista, disfarçado e mal intencionado que se oculta no mundo virtual?”. Suas dificuldades com a tecnologia são reais, mas possíveis de reverter, ainda que com ressalvas. O que é irreversível é a solidão diante deste um mundo falso, e a sensação de ser usada por um sistema que favorece ludibriar e enganar.

“Relativizando” trata dos preconceitos relacionados à idade, especialmente das mulheres. Como você enxerga a relação entre o envelhecimento e o capitalismo na sociedade contemporânea?

A consciência de si mesmo no senso de uma beleza efêmera, propagada e travestida de felicidade, afeta e consome a dignidade humana, em qualquer idade, tanto em homens quanto em mulheres, mas mais cruelmente na mulher.

O consumismo e a superficialidade distanciam de um conhecimento mais aprofundado de nós mesmos e nos banaliza. Nossa demanda, física e mental, é de baixa qualidade: competição, fama e sucesso são nossos alvos, independentemente de quem ou do que estamos utilizando como escada. Transformamo-nos em máquinas, somos supridos, programados e acionados de fora por uma inteligência artificial, movida pelo sistema, nunca pelo ímpeto de uma real necessidade ou clamor de nossa natureza humana.

Temos sede de substância, mas nos perdemos no vazio existencial do relativo e fugaz. Limitados ao endeusamento do corpo físico, ao patamar salarial, à zona onde residimos, ou ainda em que tipo de atividade profissional nos enquadramos, deparamo-nos diante de um angustiante desconforto interior. A falta de sentido que vamos moldando no nosso viver adulto nos trava.

“Vê-se, no presente, mulheres que se apavoram ao chegarem aos 30 anos, sem terem suas vidas direcionadas ainda. É aí que se manifestam também os primeiros sinais de decadência do viço físico. Envelhecer torna-se sinônimo de decrepitude, e todos seus sinônimos lembram falência. Sabedoria e maturidade não despertam cobiça em ninguém. Onde a sabedoria alimentaria o viço do imediatismo ou da competição? Sem competição, como alimentar o consumismo? Sem consumismo e sem competição, o mito da beleza, centrado na primazia das aparências, morre. Paro por aqui…” – Transcrição de parte da crônica “Relativizando”

Além dos contos realistas, você utiliza elementos fantásticos, oníricos e metafísicos em algumas narrativas. Como esses elementos contribuem para explorar os conflitos da existência humana?

Penso que a fantasia, o sonho e a metafísica se conectam no papel de aliviar tensões, dar vasão aos nossos medos e nos elevar acima dos limites ditatoriais das regras e dos formalismos. É uma dimensão libertadora do cotidiano, da banalidade e das correntes indutivas ao certo e ao errado. Porém a metafísica não se caracteriza exclusivamente pela fantasia. É uma percepção mais ligada ao intelecto, à capacidade lógica de enquadrar causa e efeito quanto à vida, aos seres, e ao universo como um todo. A metafísica é algo, como o nome diz, que ultrapassa o que nossos sentidos físicos afirmam. 

O fantástico e o onírico se diferenciam da Metafísica, porque os primeiros nascem da imaginação, são inventados, onde tudo cabe. O último é como um desdobramento do intelecto, da razão, da lógica da causa e efeito. Este, embora abstrato e invisível, parece mais real.

Em “Concepção”, você apresenta a fecundação de uma mulher através da poeira cósmica, enquanto “O Pesadelo de Lolita” mergulha nos pesadelos de uma adolescente adotada. Por que escolheu abordar esses temas específicos em suas histórias?

Não planejo nem escolho a abordagem de um tema antes de escrever, principalmente nos contos. Faço isto às vezes numa crônica, mas conto, crônica ou poesia nascem sempre de uma intuição primeiro, de um sentir repentino, de um pensamento não resultante de uma reflexão, de uma percepção inédita, inexplicável, um impacto sensorial, visual ou auditivo.

Às vezes guardo isto dois ou três dias, e depois sento para escrever. Se passar deste tempo, a inspiração expira. “Concepção” eu escrevi de um fôlego só, dentro de uns 15 ou 20 minutos, movida pela magia das palavras, pela sonoridade e beleza da sequência que começou a se desenrolar na minha cabeça. Escrevi à mão, depois passei para o computador. Depois de terminar, fui pesquisar se Netuno de fato tem anéis gasosos, e se eram de gás metano mesmo. E confirmei. Não descrevo a fecundação de uma mulher, mas o surgimento da mulher e do homem, num encontro entre óvulo e espermatozoide, que vagavam sem corpo na poeira cósmica. Quanto ao pesadelo de Lolita, descrevo meus próprios medos e fantasias quando era adolescente. Fui adotada.

Os protagonistas dos contos buscam se encontrar em um contexto de rápidas mudanças, em descompasso com a sociedade. Como você enxerga a importância de buscar a conexão com a própria essência e a liberdade em um mundo que valoriza a pressa e a superficialidade?

Nossa essência interior provém de fora. Fora e dentro são faces da mesma moeda: são nossas absorções que passam pelo filtro de nosso juízo e capacidade de discernir, quando há maturidade e condições para tal. Por isto a denominamos de “interna”. A essência do mundo é vida, portanto é ação, movimento, velocidade, combates, embates pessoais e coletivos. 

O aparente descompasso de intelectualidade, emoções, conflitos, desajustes, encontros e desencontros faz parte da liberdade de escolha de cada ser. Digo aparente, porque o complexo social é muito mais complexo do que possamos supor, individualmente. Cada um tem seu momento de entender determinadas coisas. Não existe uma individualidade absoluta ou genuína, em si, pois cada um de nós é criado, educado e alimentado intelectualmente por uma sociedade movida por paradigmas e crenças.

Nossa essência é um casulo, onde vamos desenvolvendo asas, enquanto o lado externo, ou a superfície, nos confina em paixões que nos dominam, numa hipnose coletiva. A pressa faz parte de um sistema voltado para a alienação, no interesse de exercer domínio, em que não há tempo para pensar porque pensar liberta. Só uma consciência alienada se permite ser governada e se submeter.

É um jogo de dominados e dominantes, que só termina quando começamos a desenvolver nosso senso de transcendência entre a aparência e o conteúdo verdadeiro, ou entre a forma transitória e a substância que a tudo sustenta e conduz ao crescimento e superação dos desafios.

Além de escritora, você também é pedagoga e possui experiência na área da educação. Como essa vivência influencia a sua escrita e as temáticas que aborda em seus livros?

Minha formação acadêmica é Educação, e apesar de nunca ter exercido a profissão (a não ser em estágios e pequenas experiências de trabalho voluntário), tiro desta terra fértil todo o meu aprendizado. Educação é o alicerce de todo o aprendizado, porque nos põe frente a frente com a fragilidade do ser humano na sua ignorância e inocência natural, desde quando chegamos neste mundo. Educar é um ato de amor e o amor é o oxigênio da vida. 

A educação, sistemática ou não, tem princípios de igualdade, equidade disciplina, respeito e faz brotar o que temos de melhor. Unida à filosofia, faz brotar asas em nós rumo a um mundo de relações mais equilibradas e saudáveis.

“Um Olhar Para Além do Cotidiano” é o seu terceiro livro publicado. Como você percebe a evolução da sua escrita ao longo dessas obras? Quais aprendizados você levou para a construção desse novo trabalho?

Acredito que já na primeira obra, uma coletânea de poemas em Antologia, em 1985 – “Quando as Folhas Caem” eu já tinha a sensação de semeadura de mim mesma pela escrita. Porém, o desejo de aplauso e reconhecimento público era muito mais forte. No meu livro do ano passado, “No Mundo da Ficção, Só que Não”, transcrevo relatos de experiências que vivi, (como regressão a vidas passadas e Ayahuasca) que conduzem a reflexões metafísicas.

Se eu fizer uma junção de tempos e temas, vejo que a metafísica continua sendo minha bússola. Em termos de “evolução” me sinto mais inteira, e não mais em pedaços como mais jovem. Entendo que corrigindo meu olhar, para além do que o senso físico alcança, me aperfeiçoo com mais integridade e tenho mais o que oferecer de mim mesma. Isto me levou a reunir minha escrita passada com escritas mais atuais e condensá-las neste livro atual.

Além de escritora, você mantém o blog “Além da Margem do Mundo”, em que escreve sobre diversos temas. Como a interação com os leitores e a troca de ideias na plataforma online influenciam a sua escrita e o seu processo criativo?

Ter uma plataforma pública dá vida ao meu desejo e prazer de escrever, porque escrever é um ato de troca e compartilhamento, jamais um ato condenado ao isolamento e ao anonimato. Mesmo que meu nome lá não constasse, nada seria anônimo. Me sinto presente em minhas palavras: o conjunto delas dizem “Eu sou!”. Saber que alguém toma conhecimento de nossos pensamentos, elogiando ou não, nos dá sinais e sensação de pertença, tipo “Ôpa, alguém me vê!”.

Não tenho ainda interação com leitores, porque faz pouco tempo que criei este espaço. Mas isto não importa muito, por enquanto. Quando ouço o plim-plim no celular, me avisando que tem alguém visitando meu blog, isto me é suficiente, para me plenificar. O importante é meu plantio de mim mesma ali. Sei que alguém lê, e lerá.

Talvez tenham pessoas que guardem seus escritos para serem vistos depois da morte, não sei. No meu caso me faz muito bem saber que estou jogando ao mundo minhas ideias e meus ideais, como semeando a terra para gerações vindouras. Talvez seja um modo de me tornar concreta na eternidade, neste orbe.

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