A música e os Beatles ajudaram na recuperação um homem chamado Henrique Kuhl, de 72 anos. No processo de despertar, quando recobrava com dificuldade a consciência, lembrava de ter sido informado, em um quarto de enfermaria do Hospital Moinhos de Vento, que seria direcionado ao Centro de Tratamento Intensivo (CTI).
As ideias ainda eram confusas sob o efeito dos medicamentos. Tentava movimentar as mãos e as pernas, articulava um chamado à enfermeira, mas não conseguia. Ficava paralisado e sem voz, concluiu. Ao enxergar um profissional corpulento e de máscara escura passando pelo corredor, imaginou ser um urso.
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“Mas onde eu vim parar?”, questionou-se o engenheiro mecânico.
Na internação devido a complicações do coronavírus, que durou 46 dias, 39 deles no CTI, onde esteve entubado (ligado a um ventilador mecânico para conseguir respirar), Henrique retornou à lucidez ao ouvir uma música de sua banda preferida. Here Comes the Sun (Lá vem o sol, na tradução do inglês), dos Beatles, tocava em um celular fixado ao lado do leito.
“Opa! Isso eu conheço”, afirmou.
Uma playlist especialmente criada pela esposa, a psicanalista Claudia Diniz Kuhl, de 52 anos, e pela filha mais nova, Antônia Kuhl, de 18 anos, envolvia a saída de Henrique do longo período de sedação. Como os pacientes infectados pelo covid-19 ficam isolados, com restrição de visitantes, os profissionais do CTI costumam oferecer aos familiares a possibilidade de levar ao hospital um celular ou tablet com uma lista de música personalizada. Nos boxes, individuais, cada um pode usufruir do som ambiente de sua preferência, inclusive nos períodos que está inconsciente.
Por sugestão da equipe do hospital, a mãe e filha fizeram, então, a trilha sonora com as músicas que a família estava acostumada ouvir durante as temporadas na casa da praia da Barrinha, em Santa Catarina.
“Minha vontade era subir em uma escada, por fora do hospital, e gritar em um megafone para ele acordar”, revela Claudia, relembrando da numerosa sequência de dias em que nada se alterava no quadro do marido ou quando os progressos eram bem pequenos. “Sempre achei que era importante ele ter um lugar para onde voltar. Ter um porto para atracar o barco depois da tempestade: a família, os amigos, a arte.”
O resultado foi bem mais do que uma simples amostra dos artistas preferidos do trio. Tratava-se de uma demonstração de afeto e saudade e um apelo pela completa recuperação de Henrique, como mostram alguns dos títulos: Wish You Were Here (Eu gostaria que você estivesse aqui, do Pink Floyd), Chega de Saudade (João Gilberto), Andar com Fé (Gilberto Gil), Um Dia Após o Outro (Tiago Iorc e Daniel Lopes), Better Together (Melhor juntos, de Jack Johnson), Free (Livre, de Donavon Frankenreiter) e Pé na Estrada (Dora Vergueiro).
Depois de completamente acordado, Henrique ainda permaneceu alguns dias no CTI, antes de ser transferido de volta para um quarto de enfermaria. Seu estado foi progredindo, as checagens e os procedimentos foram reduzidos, e o paciente precisava preencher horas e horas sem ter nada pra fazer, que acabaram sendo preenchidas pela playlist intitulada com seu nome, ao lado de um coração. Nas sessões de fisioterapia, a música acompanhava a execução dos exercícios.
“Era muito agradável para mim. Uma alegria”, relata o engenheiro, também apreciador dos solos de guitarra de Mark Knopfler, da banda Dire Straits.
Em 8 de maio, desde que recebeu alta hospitalar, ele continuou o processo de reabilitação em casa e o conjunto de canções ganhou sentido ainda mais especial para a família Kuhl. “É muito emocionante ouvi-las agora”, afirma Claudia.
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A psicóloga assistencial do CTI Adulto do Moinhos de Vento, Silvana Pinto Hartmann, afirma que a relação entre um paciente e a música é algo anterior à pandemia. Duas situações marcaram o setor nos últimos tempos. Um músico, internado há três meses, estava muito deprimido. Quando ele manifestou o desejo de tocar o piano do hospital, a equipe se juntou para viabilizar a transporte do paciente, sob todos os cuidados necessários, até o instrumento. Como estava muito fraco, ele contou com o apoio de uma funcionária tocando com ele. Curado, retornou ao hospital e tocou outra vez. Outro caso é de um maestro que esteve internado no CTI, e parte da orquestra que ele regia foi até o Moinhos de Vento se apresentar com o maestro no comando.
“É uma forma de amenizar o desgaste do dia a dia no hospital. A rotina de cuidados é intensa. O paciente se conecta com algo a que já está acostumado. A música resgata o lado subjetivo, conecta-o consigo mesmo, com o seu conteúdo afetivo e com a família, faz sentido, entretém. Não tem contraindicação”, diz a psicóloga. “Enfermeiros e técnicos em enfermagem falaram que também é bom para eles. Atendem o paciente com música, que traz um estímulo positivo e de bem-estar.”