O projeto Edições Sesc SP apresenta o quarto livro da Coleção Discos da Música Brasileira. Na obra chamada “O CANTO DA CIDADE: DA MATRIZ AFRO-BAIANA À AXÉ MUSIC DE DANIELA MERCURY“, o jornalista baiano Luciano Matos conversou com alguns dos artistas e compositores mais antológicos da história da música nordestina.
Matos conversou com artistas e compositores – como o recém-falecido Letieres Leite, Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Liminha, Vovô do Ilê , Márcia Castro e Márcia Short – para reapresentar a história e os bastidores do álbum e do gênero que nasceu na Bahia e conquistou as ruas de todo Brasil. A obra tem como ponto de partida um show da cantora Daniela Mercury realizado em São Paulo, em junho de 1992, que contribuiu para a consolidação da chamada axé music.
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Confira nosso bate-papo, na íntegra abaixo:
1-O filme “O Canto do Povo de Um Lugar” disponível na Netflix aborda o mesmo evento chave do seu livro: o show da Daniela Mercury em São Paulo que quase literalmente pôs o MASP abaixo. Quais fatos e perspectivas o livro traz de novidades para o evento?
Luciano Matos: “Esse foi o momento chave para a carreira de Daniela Mercury, também acho crucial para o próprio Axé, mas há algumas “lendas” em torno do evento. Eu tento contar detalhadamente como aconteceu e contextualizar como foi e como foi recebido. Uma dessas “lendas” é que da forma como normalmente é contada parece que foi algo inédito para um artista baiano ligado à Axé Music ter tocado e lotado o Masp na Paulista, mas o Olodum fez parecido na semana anterior. Outra é que teria sido esse show que determinou as atenções para Daniela. Ela , no entanto, já vinha com uma carreira crescente, já fazia muito sucesso com “Swing da Cor”, já tinha um público razoável em São Paulo que conhecia seu trabalho, mas mais do que isso, ela já tinha contrato assinado com a Sony, não foi esse show que determinou isso. O que vejo é que o show revelou o poder do que ela viria a se tornar, um fenômeno. Não era apenas uma nova cantora para fazer algum sucesso, ela mostrou ali que tinha um poder carismático, de presença e musical”.
2-Uma provocação: Elvis Presley expandiu os limites do rock, enquanto Eminem os do hip-hop. Anitta continua expandindo os limites do funk. Daniela e Ivete expandiram os limites do axé. Em termos de apropriação cultural, o que um artista branco hoje tem que ter em mente hoje ao cantar um ritmo que não diz respeito a sua cor de pele ou sua realidade social?
Luciano Matos: “Eu acho que muito mais do que o artista, é o entorno dele. O artista deve fazer arte, arte não tem limites. A arte se move e se desenvolve, sempre aglutinando referências, um artista sendo influenciado por outro, ou por gêneros distintos. Então acho que muitas vezes isso não é controlável pelo artista. Ele produz algo que vai ter essas referências, sem ser algo calculado. Evidente que não é sempre. Há sim, criações mais pensadas em aproveitar outras culturas, ai vamos entrar mais na questão do mercado do que da arte. Acho uma questão muito delicada. Porque cultura é algo que não considero que tenha um dono, Os elementos vão se cruzando, um influenciando o outro, como um organismo vivo, que vai se transformando. Agora, evidente, que há aproveitadores, evidente que existem os que não tem ligação nenhuma com o que faz e utiliza para se beneficiar. Daniela é acusada de apropriação hoje, mas o histórico dela e a própria convivência com os blocos afro demonstra que ela sempre fez algo verdadeiro. Os dirigentes e compositores dos blocos respeitam muito ela, conto isso no livro. O que considero que devemos prestar mais atenção, discutir e questionar é o modo como a indústria, como o mercado, trabalha isso. Quem define onde vai investir, em que artista vai colocar dinheiro, vai apostar e qual o perfil desse artista é a indústria, o mercado musical. A indústria não costuma se importar com a origem, as raízes, nada disso. Costuma seguir a lógica meramente comercial, e com isso vai repetindo as lógicas vigentes de exclusão, de racismo, de preconceito. Isso atualmente está pior do que nunca. Nunca os sucessos musicais no Brasil foram tão branco, hetero normativo, basta ver os sucesso de hoje e comparar com outras décadas. A indústria quer apostar no artista que se enquadre num determinado perfil estereotipado, numa estética que agrade o máximo de pessoas, e isso acaba repetindo a visão racista, preconceituosa do Brasil, especialmente do Sudeste e Sul. O hip hop e o funk já sofrem com isso, exatamente da mesma forma que aconteceu com a Axé Music”.
3-O produtor Neobeats junto de Agnes Nunes vem recriando o forró com toques eletrônicos, enquanto a equipe da Brabo Music emplacou um eletroforró entre Lady Gaga e Pabllo Vittar. Quais gêneros nordestinos você julga que tem potencial para continuar rendendo discussão no mercado nacional e internacional?
Luciano Matos: “Essas mesclas tem a ver até como que respondi acima. Perceba como os gêneros se atravessam, as influências vem de todos os lados. Não dá pra separar, querer pureza, definir um dono e dizer quem pode ou não pode. Isso é muito natural, está na essência da música popular do Nordeste. Na Bahia, o pagodão, já vem se renovando, originário dos guetos, como consequência do samba junino, do samba duro, do samba de roda, já assimila outras referências e elementos. Trap, R&B, eletrônica, samples já são parte do cotidiano e acho que está se tornando algo muito grande. Vem influenciando artistas nacionais e até internacionais de todos os tipos e tamanhos. Apostaria nisso como uma música que pode se tornar a música da vez no país. Até porque tem características que combinam com o Brasil: música divertida, dançante, sensual. Acho que vai ser crucial para isso o país sair desse momento triste, melancólico e depressivo. O sertanejo combina mais com isso, um hedonismo mais conservador. Se o Brasil voltar a ganhar novos ares acho que o pagodão pode ser a música que embale isso. Mas além dele há diversas sonoridades sendo forjadas, várias misturas. Brega funk tem potencial, por exemplo”.
4-Qual o papel de Letieres Leite na consolidação da axé music e também na carreira de Ivete Sangalo?
Luciano Matos: “Letieres é um dos principais nomes da música brasileira dos últimos 20 anos. Seu legado criativo, de pensamento, de ensinamento ficou em artistas do mainstream, mas também do ambiente independente e midstream. Ele mostrou com propriedade e bem embasado a importância da música negra brasileira e a presença dela em tudo que é feito aqui. Vinha reproduzindo isso em gêneros e estilos os mais diversos, seja em seus projetos como a Rumpilezz ou trabalhando com outros artistas. As claves, as levadas, as batidas, mas também a organização dessa música, como algo muito mais profundo e que merece atenção e estudo do que costuma ser encarado. Ele mostrava que havia um elo que formatava toda a produção musical brasileira, uma origem negra, trabalhava mostrando isso. Quanto a Ivete, acho que ela poderia ter aproveitado muito mais Letieres, com tanto tempo que passou com ele”.
5-Artistas mais politizados como Daniela Mercury vem sendo mais lembrados nos últimos tempos. Nina Simone dizia que os “artistas devem refletir o tempo em que vivem”. Qual o papel da política para os artistas num mundo pós-pandemia?
Luciano Matos: “Eu não sou artista, acho que eles que podem responder com muito mais propriedade. Mas na minha opinião, acho que não há uma obrigação em se posicionar, artista em princípio tem que fazer arte. Agora, num momento tão delicado, é sim importante que os artistas se posicionem. Eles são influenciadores, uma parte dialoga com um público vasto, com grandes massas e podem contribuir com mais informação circulando. Diante de tanta notícia falsa, por exemplo, eles podem ajudar a disseminar o que transita com mais dificuldade e que recebe menos atenção”.
6-Com todos seus anos e anos de pesquisa para o livro, você conseguiu decorar a letra de Faraó? Esta seria a letra mais difícil da língua portuguesa?
Luciano Matos: “Eu sei a letra desde 1987 quando a música foi lançada. Na escola, fazíamos até paródias com essa música. Foi um marco de fato na música da Bahia. Todo mundo que gosta de Carnaval sabia cantar, boa parte ainda sabe. A letra é interessante porque mistura elementos da cultura egípcia com a baiana, às vezes sem um sentido tão claro, mas a ideia é muito boa. A origem da axé music é calcada na música dos blocos afro, por isso os países africanos estavam sempre presentes, cantados de forma pop, ao mesmo tempo que traziam discussão sobre negritude, problemas sociais e racismo. Dá pra ser pop, fazer sucesso e ainda fazer dançar tratando desses temas. Isso já foi popular no Brasil. Acho que não existe letra difícil, existe a música ser tão popular que qualquer um aprende. Vide Faroeste Caboclo, que com 9 minutos, sem refrão, todo mundo sabia cantar”.